Agricultores e pesquisadores defendem que a agroecologia pode sanar a fome no Brasil

 

03 de outubro é celebrado o Dia Nacional da Agroecologia.

Mas, nesse ano de 2021, ele chega no momento em que mais da metade da população brasileira vive com insegurança alimentar. Mais do que um modelo de agricultura, baseado em conhecimentos tradicionais de interação com o ambiente por meios sustentáveis, a agroecologia é o caminho para responder à crescente devastação do meio ambiente, para desenvolver soberania nacional e capaz de sanar a fome de toda a população.

“A agroecologia se apresenta, nesse contexto de sindemia covídica como a estratégia possível de enfrentamento à fome porque ela traz o olhar a partir de um passo atrás ao ato de se alimentar”, descreve Islândia Bezerra, pesquisadora e presidenta da Associação Brasileira de Agroecologia (ABA). “O passo da produção de alimentos que enfatiza a natureza como sujeita de direitos”, resume.

Chirlene Barbosa trabalha com agroecologia há mais de duas décadas no município de Bom Jardim, no agreste Pernambucano. “Eu sei o que é fome” diz, ao contar que era pequena quando o pai morreu e a “mãe ficou com sete filhos para criar”.

Produtora de hortaliças, frutas e legumes, Chirlene narra que “terra é vida” e que mesmo que o dinheiro fique escasso, hoje a mesa é farta. Ela garante que é possível agricultores agroecológicos abastecerem “todos os bancos de comida”, mas é preciso “os governos investirem mais”, pois “muitas vezes não tem como essa produção chegar às pessoas”, comenta.

“Somos nós agricultores familiares que produzimos a maior parte do que a população consome”, constata Hermes, assentado em uma área considerada referência em práticas agroecológicas e agroflorestais desde o início dos anos 2000. “Esse governo quer desmobilizar as organizações sociais fechando a torneira para o incentivo das atividades agroecológicas e dando muita grana para o agronegócio”.

As dificuldades para aplicar essa inversão no Brasil parecem proporcionais à sua urgência. Os dados do “Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia Covid-19 no Brasil”, feito pela Rede PENSSAN em 2021, são alarmantes. Das 116,8 milhões de pessoas com insegurança alimentar no país, 43,4 milhões não tinham comida o suficiente e 19 milhões estavam efetivamente passando fome.

Os números evidenciam porque o Brasil, que tinha em 2014 saído do Mapa da Fome – levantamento das nações que têm 5% ou mais de sua população subalimentadas – voltou a figurar na lista.

Em 27 de setembro a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por pedido da Associação Civil Ação Educativa, entrou com uma ação no Supremo Tribunal Federal para obrigar o governo Bolsonaro a implementar políticas públicas de combate à fome.

Denunciando um “desmonte da política de segurança alimentar”, a ação reivindica, entre outras medidas, que o governo revogue a extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), garanta repasses financeiros ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e invista R$1 bilhão no Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

Esses dois programas são citados por Islândia como exemplos de políticas públicas federais importantes na potencialização da agroecologia, ao lado de iniciativas estaduais e municipais. “As políticas existem, mas quando comparadas aos investimentos do Estado no setor do agronegócio, estamos na periferia no sentido de acessibilidade”, diz.

Em setembro, a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), em parceria com a Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil (FES Brasil), lançou o artigo “Desafios para o Abastecimento e Soberania Alimentar no Brasil”. Nele, os autores avaliam que o PAA, ao longo dos anos passou a privilegiar compras institucionais de médias e grandes cooperativas.

O artigo questiona, ainda, que uma série de entraves burocráticos passaram a impossibilitar a participação de diversas comunidades no programa, “particularmente comunidades quilombolas, indígenas e pequenas cooperativas de agricultura familiar”.

Enquanto isso, o Ministério da Agricultura aprovou, em 2020, o registro de 493 agrotóxicos, o número mais alto da série histórica, compilado desde 2000. Dos 1.059 agrotóxicos registrados desde janeiro de 2019 no Brasil, cerca de um terço é proibido na União Europeia por serem considerados perigosos para a saúde e o meio ambiente.

Além disso, a isenção de impostos das quais goza a agroindústria no Brasil representou, no ano passado, R$ 29,2 bilhões. Em 2019, as exportações feitas pelo setor renderam aos cofres públicos apenas R$ 16,3 mil reais. A despeito da priorização estatal ao agronegócio e do desemprego crescente, as iniciativas autônomas de solidariedade no enfrentamento à fome se espalharam pelo país desde o pandemia de Coronavírus.

“São várias as experiências”, sorri Islândia, ao elencar as feitas pelo MST, o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), o Movimento de Agricultura Urbana, as cozinhas solidárias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), as comunidades quilombolas, indígenas. “Estão trazendo o debate da produção e consumo de alimentos saudáveis para um contexto de escassez”, descreve.

Hermes relata que o início da pandemia foi um choque para as famílias do Assentamento Sepé Tiaraju. “Todas as portas se fecharam para quem trabalhava com venda em feiras locais, em congressos, o PAA e o PNAE pararam. O povo nosso aqui ficou desesperado né, o que a gente vai fazer com tanto alimento?”, conta. “E a gente começou a perceber que tinha gente nas cidades passando muita dificuldade”.

A partir da articulação do que chamam de Grupos de Consumidores Agroecológicos, os assentados do Sepé e de outras comunidades do MST mobilizaram parceiros para comprar seus produtos e os doarem para a população periférica de Ribeirão Preto. “A gente chegou a juntar mais de oito toneladas. E agora já estamos num novo projeto”, relata Hermes.

“Ninguém vê o agronegócio distribuindo alimentos. O agronegócio não vai poder jamais fazer uma ação de solidariedade distribuindo alimentos, porque ele não produze alimentos”, avalia Islândia: “Ele produz commodities, voltados à exportação”.

“O que pode ser que o agronegócio faça?”, reflete a presidenta da ABA. “Pode distribuir cestas, com produtos comestíveis ultra processados. Diferentemente de quem produz comida, frutas, legumes, raízes, tubérculos, leite e derivados. São essas organizações sociais de base que estão fazendo o enfrentamento à fome”, sintetiza.

Na visão de Bezerra, no entanto, o combate à insegurança alimentar “não pode ser feito única e exclusivamente pela sociedade civil organizada”, mas também “no campo das macro políticas públicas”.

Marcos Abreu faz uma avaliação similar, defendendo ser estratégico o foco no âmbito municipal. Aliada às denúncias da pressão que a bancada ruralista faz em defesa do agronegócio na esfera nacional, Marquito acredita que “as leis e políticas locais são de alto impacto”.

Fonte: Brasil de Fato.

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